Testemunho de um professor
"Sou coordenador TIC do meu Agrupamento de Escolas e fui convocado
para me deslocar ao parque tecnológico de Cantanhede para receber
formação sobre o tão propalado portátil Magalhães. Lá fui eu para dois
dias de trabalho, cujo programa era, em 90%, composto pela expressão «
jornada de trabalho com a Intel»:
Hoje estou aqui para relatar aquilo que se passou naqueles dois dias,
e se o estou a fazer, é porque algo de relevante se passou.
Pelas reacções que tinha lido nos fóruns relativamente às mesmas
sessões de Porto e Lisboa, já ia a contar que aquilo não seria o que
eu esperava; mas longe de mim imaginar que iria assistir a uma coisa
absolutamente surreal.
Primeira nota triste do evento: a organização distribuiu «pen drives»
de um Gb, oferta da Intel contendo toda a documentação. Acontece que
tinham umas 100 unidades para dar a 200 pessoas. Claro que metade
(incluindo eu) ficámos a ver navios, havendo dignos colegas que se
assambarcaram de duas ou mais, facto que também não me causa qualquer
espanto. Mas para a Organização tratou-se de mais uma normalidade!
Comecemos pela manhã de Quinta-feira, onde fomos levados, em grupos,
para pequenas salas do complexo, onde supostamente nos iriam ser dadas
directrizes relativamente ao Magalhães e às suas potencialidades em
contexto educativo, para nós transmitirmos aos professores do 1º
ciclo. Aliás, esse deveria ter sido o grande objectivo deste encontro;
recebermos formação para a replicar junto das escolas envolvidas.
Ao invés disso, e para ser muito mais sucinto do que gostaria nesta
crónica, somos brindados com apresentações de powerpoints em
português, lidas em Inglês com sotaque russo, traduzido por senhoras
contratadas para o efeito, como se nunca tivéssemos ouvido uma palavra
em Inglês na vida e como se isso fosse o entrave à formação. Num
parque dito tecnológico, as redes funcionavam mal ou não funcionavam,
ninguém sabia ligar, o senhor russo ia ironizando como se estivesse
num país de 3º mundo e a senhora tradutora ia tentando fazer a uma
espécie de ponte entre surdos mudos. A seguir, mais um estrangeiro
qualquer a debitar informação em inglês sobre um powerpoint em
português e depois apareceu um brasileiro (ena!!! Um brasileiro!!!)
mas que nada de útil nos transmitiu.
Ou seja, depois de uma manhã onde absolutamente ninguém aprendeu nada
de útil sobre os Magalhães que qualquer jeitoso de informática não
domine, ninguém imaginava que o pior estava para vir.
Eis que pelas 14 horas iria começar uma das melhores sessões de circo
a que os meus olhos assistiram até hoje. O speaker de serviço que
ostentava na lapela uma identificação de uma empresa que não conheço,
mas que nem era do ME nem da Intel nem da JP Sá Couto, apresentou as
três senhoras que tinham vindo expressamente dos States, com chancela
da Intel, para nos brindarem com uma sessão de trabalho inolvidável.
Eis que aparecem 3 senhoras com ar de quem está reformado há 20 anos,
nos EUA, mas que em Portugal estariam no auge da carreira. Depois das
simpatias ao país e de demonstrar que nada de útil iriam transmitir,
resolveram propor aquilo que as trouxe ao, pensam elas, Burkina Fasso
da Europa. Desde logo me demarquei e senti vontade de abandonar a
sessão, mas os colegas... ah e tal... esquece isso... e tal.... Não te
enerves... isto é sempre assim... e tal! Continuei a assistir e a
incredulidade ia aumentando.
Aquelas 3 senhoras, acham que uma sessão de trabalho com a Intel é
propor a 200 professores que inventem uma cantiga ao Magalhães, e se
possível com teatro à mistura. Como eu e mais alguns colegas (muito
poucos) mostrámos alguma estupefacção pelo que se estava a passar, uma
das senhoras americanas apressou-se a dizer, bem alto e em tom
ameaçador, que quem não participasse não seria incluído no sorteio de
um Magalhães que iriam oferecer.
E, meus caros leitores, era ver 200 professores imbuídos naquela
actividade com todo o afinco; sei que muitos grupos trabalharam online
pela noite dentro e ao outro dia de manhã, os meus olhos ficaram
estarrecidos com a produção apresentada. O desfile dos «trabalhos»,
(era assim que lhe chamavam) começou, e desde o malhão do Magalhães,
até à vida de marinheiro do magalhães, passando por coreografias com
adereços circenses, tudo de «útil» passou por aquele palco, até as
náuseas me obrigarem a sair. Apenas voltei a entrar para ir junto da
senhora que tinha o saquinho das senhas para o sorteio e dizer-lhe que
não iria colocar lá o meu papelinho.
Conclusão: à bela maneira dos professores portugueses, que são exímios
na arte de obedecer, mesmo não concordando, e na arte de produzir
conteúdos, ainda que lúdicos (pena ter sido num contexto absurdo),
toda a gente parecia achar aquilo ridículo, mas apenas eu e o meu
amigo Paulo Pereira resolvemos sair e mostrar a nossa indignação a uma
senhora da DREC que, educadamente, tal como eu na abordagem que lhe
fiz, esgrimiu as fundamentações para aquelas «sessões de trabalho com
a Intel».
Salvou-se a Microsoft e a Caixa Mágica que, na sexta à tarde, nos
mostraram, finalmente, algo de útil; no final pedi a palavra para
dizer que apenas aquela tarde se tinha salvo no meio das inutilidades
que caracterizaram aqueles dois dias, o que, pasme-se, faz arrancar um
caloroso aplauso da plateia.
Alguém me explique como se eu tivesse 8 anos, como é possível convocar
200 professores para dois dias de trabalho com a Intel, com a
apresentação do «Magalhães» em pano de fundo e, basicamente, 3
senhoras americanas, apoiadas por pessoas de... uma empresa (!),
gastarem um dia a obrigar-nos a produzir teatrinhos e cantigas para
miúdos de 6 anos, outro meio dia gasto com russos a lerem powerpoints
em pseudo inglês, escritos em Português, com tradução por senhoras
contratadas.
Como professor e coordenador TIC senti-me vexado nestes dois dias.
Aquelas senhoras devem pensar que somos um bando de imbecis e nunca
vimos um computador na vida; tudo isto pago pela DREC, cuja Directora,
no final, enalteceu o evento.
Relativamente aos meus colegas, mostraram, como sempre, que tudo são
capazes de fazer, mesmo o ridículo, mas ficou, essencialmente, a prova
de como não há-de o Ministério fazer de nós gato-sapato a seu
bel-prazer!!!
Nota: O Magalhães é um excelente equipamento e, mesmo sem aposta na
formação e com esta atabalhoada distribuição, julgo ser uma mais valia
efectiva para a modernização do caquéctico ensino do 1º ciclo em
Portugal.